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sábado, 6 de agosto de 2016

CAPÍTULO 72

CENA 1: Suzanne começa a gargalhar alto.
-Ah, Márcio! Você é mesmo uma figura! Vou eu deixar o país por causa da merreca de uma gargantilha de ouro com aquele botão brega no meio? Me poupe, querido, me poupe!
-Pelo visto você não tem a dimensão da gravidade que as coisas podem ter...
-Não tenho mesmo, Márcio. Felizmente eu sou mais ajuizada do que qualquer pessoa nesse mundo e não sofro de paranoia. Agora vê se pode: deixar o Brasil porque a Riva pode desconfiar da gargantilha? Quem sabe eu não dou de presente pra ela essa coisa brega? Assim eu fico acima de qualquer suspeita...
-Você tá enlouquecendo, Suzanne? Qualquer joalheiro que ela for pode atestar que aquela gargantilha é uma joia e não uma bijuteria!
Suzanne gargalha.
-Eu morro de rir da sua ingenuidade, Márcio. Você acha mesmo que eu iria dar a gargantilha pra ela? Se situa, rapaz! Sabe o tanto de grana que a gente tira quando eu coloco essa joia na penhora?
-É, mas eu também sei que com os golpes que você planeja, não te é nada difícil conseguir grana por outros meios.
-Posso ser golpista, mas também não sou burra. Tem horas que a gente precisa recuar, pra não ser visto... esse é um dos momentos em que preciso ficar na minha.
-É justamente por isso que eu tou dizendo que é melhor você deixar o país.
-Eu não entendo o motivo que te leva a acreditar que isso ia ser necessário justo agora.
-Deixa eu me fazer claro, pra ver se você, de inteligência tão aguçada, percebe a coisa...
-Pois então seja objetivo, Márcio, que eu não tenho todo tempo do mundo pra ficar jogando conversa fora...
-Será que você não percebe que a qualquer momento podem perceber que somos ou fomos comparsas durante anos?
-É, mas não se esqueça que se eu estou numa situação mais complicada, isso é exclusivamente culpa sua!
-Culpa minha? Eu te obriguei a aplicar os golpes que você deu nos últimos vinte e poucos anos? Não!
-Mas participou comigo, animal...
-Sim, fiz isso por amor a você.
-Tá vendo como você tem culpa? Se não fosse essa sua súbita vontade de ser pai do ruivinho pro...
-Não fale assim do meu filho, Suzanne! Eu já te disse que não admito!
-Que seja. Foi essa sua súbita vontade de ser pai do Marcelo que começou a colocar tudo a perder.
-Acho que não. Quem gosta do perigo aqui é você. Quem fica ostentando uma joia roubada é você.
-É, mas não se esqueça que quem roubou essa joia foi você, há mais de vinte anos. Será que tá com Alzheimer? Acho você jovem demais pra isso.
-Quem anda ruim da cabeça é você, Suzanne. A Riva e o meu filho sabem de tudo isso. Contei sobre meu passado de pequenos crimes para eles... e eles me perdoaram. Você está ficando sem saída, Suzanne... aceite isso.
-Sabem de tudo até a parte que eu entro na jogada, mas enfim... você pode ter razã. Só que eu não posso deixar o Brasil imediatamente e você tem de entender isso.
-Posso saber por que?
-Eu tenho pendências. Algumas coisas que ainda precisam ser feitas antes de eu passar esse tempo fora do país...
-E do que se trata?
-Eu te diria se você ainda fosse meu comparsa. Mas desde que você decidiu ser o pai do ano, sua única função tem sido transar comigo... não tenho a mínima obrigação de te dizer nada, se você não faz mais parte disso tudo...
-Só fico com medo que você cometa loucuras contra a Riva...
-Quanto a isso, fique tranquilo. Eu sou golpista, mas nunca fui louca.
-Não é o que parece, quando você insiste nessa cisma com a Riva desde que a gente era garoto...
-Márcio... cala a boca! Você não sabe de nada.
Suzanne deixa o restaurante do hotel. CORTA A CENA.

CENA 2: Durante o café da manhã, Eva nota que Renata está com expressão tensa.
-Ainda pensando naquele pesadelo dessa noite, amor?
-Eu sei que pode parecer besteira, Eva... mas não consigo tirar aquelas imagens da minha cabeça.
-Você quer falar sobre esse pesadelo?
-Melhor não. Você pode me chamar de supersticiosa e talvez eu seja um pouco supersticiosa mesmo, mas... prefiro não falar sobre o pesadelo pra não atrair nada daquilo pra realidade.
-Nossa... pelo visto deve ter sido algo bem horrível.
-E foi. O que me assusta é que já apareceu a mesma coisa pra mim três vezes.
-De repente isso é um processo inconsciente, um medo antigo, já parou pra pensar nessa possibilidade?
-Pode ser, amor... mas me pergunto onde aquelas cenas horrorosas se encaixariam entre minhas memórias do passado.
-Não vamos nem muito longe... olha, eu não quero forçar você a falar nada, Renata... mas há poucos anos sua mãe tinha te expulsado de casa ao saber que você é lésbica e seu pai não fez nada.
-Sim... mas onde que o fato de eu ter passado duas semanas na rua, catando restos do lixo pra sobreviver, se relaciona com o meu pesadelo? Eu te garanto, Eva... não tem relação nenhuma com os apertos que vivi no passado, pode apostar.
-Será mesmo que não tem, amor? Pensa comigo... você lembra dos medos que tinha quando passou essas duas semanas feito mendiga?
-Nossa, amor... eu tive medo de tanta coisa que eu poderia passar um dia inteiro listando cada um dos medos que tive...
-Tá vendo? Tira isso da cabeça, amor... nada de ruim vai nos acontecer, confia!
Renata se tranquiliza. CORTA A CENA.

CENA 3: Rafael começa a gravar cenas externas em locação para sua participação na novela. Após as primeiras cenas, o diretor pede para cortar.
-Corta! - fala o diretor.
-Fiz algo de errado? Quer regravar algum take? - questiona Rafael.
-Muito pelo contrário, Rafael. Você está irrepreensível. Impressionante como bastou uma leitura rápida na sinopse e no texto da sua personagem pra você pegar a alma, a essência necessária. Eu só vou pedir pra Liliana exagerar um pouco menos nas expressões, ok?
A atriz se sente insegura.
-Estou indo mal, diretor?
-De forma alguma, querida. Só falta se ajustar completamente ao que seu personagem pede. Eu sei que o texto dessa primeira frase pede um vocabulário diferente, próprio da década de sessenta e toda aquela revolução feminista, porém você está passando o texto... como é que vou dizer... cantado demais, entende? Isso não seria ruim, se essa primeira fase se passasse nos anos vinte, por exemplo. Os anos sessenta pedem algo mais despojado, relaxado, entende? A autora liberou cacos à vontade. Como seus pais provavelmente conviveram com pessoas que eram adolescentes ou adultas nos anos sessenta, vai ser fácil pra você criar os cacos e relaxar um pouco mais. Lembre-se que seu personagem é uma feminista que se opõe aos ideais conservadores da personagem de Rafael. Transmita essa força na sua expressão corporal, no olhar... - orienta o diretor.
A gravação segue. CORTA A CENA.

CENA 4: Cleiton está tomando café da manhã com Adelaide e nota expressão preocupada na esposa.
-Dormiu bem, querida? Suas olheiras estão aparecendo mais hoje...
-Mal preguei o olho, Cleiton... não sei exatamente por que. Mas de repente, ainda no começo da madrugada, me deu um aperto no peito, sabe?
-Por que te deu isso, amor? Você acha que está com algum problema de saúde?
-Não... comigo tudo está bem. Estou preocupada é com nossa filha e Eva.
-Ora... por que isso, agora? Elas estão ótimas!
-Disso eu sei, amor... só fico com medo que algum mal possa atingir elas.
-Querida... nenhum de nós nessa vida tá livre de acontecimentos tristes. Faz parte da vida...
-É, mas você sabe bem quais os riscos que elas correm com essa sociedade homofóbica e machista pra caramba...
-Também fico preocupado com nossa filha, Adelaide... mas não acho justo perder o sono por causa disso. Precisamos confiar de que ela e a Eva sempre vão estar protegidas...
-Eu sei que você tem razão, Cleiton... o pior de tudo é que eu sei. Mas sabe intuição de mãe? Às vezes fico com medo que seja isso... mas espero que não passe de ansiedade ou paranoia...
-Vai ficar tudo bem, Adelaide... você vai ver.
Os dois seguem com o café da manhã. CORTA A CENA.

CENA 5: Riva chega à companhia de teatro e é recebida no camarim por Procópio e Mara.
-Desculpem o atraso... espero não estar atrapalhando o trabalho de vocês com os atores... - fala Riva.
-De forma alguma, querida. Eles estavam avisados que você viria hoje. Depois, eles já estão bem independentes, só precisam das minhas orientações quando recebem alguma nova personagem... - fala Mara.
-Exatamente, Riva. Estamos felizes que você tenha vindo até nos para se preparar... - fala Procópio.
-Nem sei por onde começar, gente... daqui duas semanas mais ou menos vai ser meu teste de elenco...
-Procópio... você pode orientar os atores no palco? Vou passar umas orientações à Riva... - pede Mara.
Procópio deixa o camarim e Mara começa a passar orientações à Riva. CORTA A CENA.

CENA 6: Ao anoitecer, Eva chama Renata, animada.
-Amor, você viu que festa vai ter hoje naquela boate que a gente costuma ir de vez em quando?
-Que festa, Eva? Não vai me dizer que é a temática da RuPaul!
-Exatamente! É a melhor de todas! Vamos?
-Ai, amor... não sei. Tou com a cabeça meio cansada, por causa daquelas preocupações.
-Pode parar, Renata! Agora você vai deixar a preocupação tomar conta de você e impedir a gente de se divertir? Não mesmo, amor!
-Você sempre tem esse jeitinho cativante de me convencer de tudo o que você quer, não é mesmo?
-Então a gente vai? Vamos correr então, porque a festa começa daqui uma meia hora!
-Ai, Eva... a gente é convidada especial pra chegar antes de todo mundo? Você sabe que a coisa fica boa quando já tá chegando a meia noite e pra ferver mesmo na pista, só depois das duas da manhã! Então a senhora sossegue essa bacurinha que eu vou calmamente pro meu banho e me arrumar pra gente ir sem a mínima pressa...
CORTA A CENA.

CENA 7: Horas depois, Renata e Eva chegam à boate e na entrada, Renata se sente observada. Eva nota a expressão tensa da mulher, mas nada diz até que elas passem pela recepção. Assim que passam pela recepção, Eva questiona Renata.
-Que cara foi aquela quando a gente tava entrando, amor? Até eu fiquei assustada...
-Eu podia jurar que tinha gente seguindo a gente, Eva...
-Poxa, Renata! Será possível que você não vai conseguir relaxar nem aqui que a gente sempre se diverte? Daqui a pouco aparecem nossas bichas maravilhosas e a gente arrasa na pista com eles!
-Ai, Eva... não sei. Eu realmente senti que tavam seguindo a gente... se não seguiam, observavam.
-Para com isso, amor! A gente veio aqui hoje pra que? Pra extravasar, dançar até cansar e beber todas ou pra ficar com medo da vida? Relaxa, amor! Estamos em um lugar seguro, nada de mal vai poder nos acontecer aqui, ainda mais que hoje é temática da RuPaul!
-Ai, você tem razão. As bichas que estão chegando aqui montadas hoje estão um arraso. Uma mais closeira que a outra!
-E não é? Só quero saber onde que estão os viados amigos da gente, que nunca perdem essa festa!
-Neeem te conto o que as viada devem estar fazendo. Se bobear já estão aqui, só que no dark room, querida...
-Ai, essas putinha! Não podem ver um pau que já esquecem das amigas!
As duas riem e seguem dançando. CORTA A CENA.

CENA 8: Horas depois, com a festa já em seu ápice, Eva, já meio bêbada, pede para Renata esperar por ela.
-Amor, cê segura o copo pra mim? Tou morta de vontade de fazer xixi e preciso correr no banheiro!
Eva corre ao banheiro e se alivia de suas necessidades. Assim que deixa a cabine, se olha no espelho.
-Jesus, Maria e José. Minha maquiagem tá uó!
Eva começa a retocar a maquiagem e não percebe quando um homem entra no banheiro feminino. Termina de retocar a maquiagem e fecha seu estojo de maquiagem. Quando se vira para sair, o homem a agarra à força.
-Cê tá louco, cara? Esse é o banheiro feminino! - grita Eva. FIM DO CAPÍTULO 72.

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