CENA 1: Suzanne começa a
gargalhar alto.
-Ah, Márcio! Você é mesmo
uma figura! Vou eu deixar o país por causa da merreca de uma
gargantilha de ouro com aquele botão brega no meio? Me poupe,
querido, me poupe!
-Pelo visto você não tem a
dimensão da gravidade que as coisas podem ter...
-Não tenho mesmo, Márcio.
Felizmente eu sou mais ajuizada do que qualquer pessoa nesse mundo e
não sofro de paranoia. Agora vê se pode: deixar o Brasil porque a
Riva pode desconfiar da gargantilha? Quem sabe eu não dou de
presente pra ela essa coisa brega? Assim eu fico acima de qualquer
suspeita...
-Você tá enlouquecendo,
Suzanne? Qualquer joalheiro que ela for pode atestar que aquela
gargantilha é uma joia e não uma bijuteria!
Suzanne gargalha.
-Eu morro de rir da sua
ingenuidade, Márcio. Você acha mesmo que eu iria dar a gargantilha
pra ela? Se situa, rapaz! Sabe o tanto de grana que a gente tira
quando eu coloco essa joia na penhora?
-É, mas eu também sei que
com os golpes que você planeja, não te é nada difícil conseguir
grana por outros meios.
-Posso ser golpista, mas
também não sou burra. Tem horas que a gente precisa recuar, pra não
ser visto... esse é um dos momentos em que preciso ficar na minha.
-É justamente por isso que eu
tou dizendo que é melhor você deixar o país.
-Eu não entendo o motivo que
te leva a acreditar que isso ia ser necessário justo agora.
-Deixa eu me fazer claro, pra
ver se você, de inteligência tão aguçada, percebe a coisa...
-Pois então seja objetivo,
Márcio, que eu não tenho todo tempo do mundo pra ficar jogando
conversa fora...
-Será que você não percebe
que a qualquer momento podem perceber que somos ou fomos comparsas
durante anos?
-É, mas não se esqueça que
se eu estou numa situação mais complicada, isso é exclusivamente
culpa sua!
-Culpa minha? Eu te obriguei a
aplicar os golpes que você deu nos últimos vinte e poucos anos?
Não!
-Mas participou comigo,
animal...
-Sim, fiz isso por amor a
você.
-Tá vendo como você tem
culpa? Se não fosse essa sua súbita vontade de ser pai do ruivinho
pro...
-Não fale assim do meu filho,
Suzanne! Eu já te disse que não admito!
-Que seja. Foi essa sua súbita
vontade de ser pai do Marcelo que começou a colocar tudo a perder.
-Acho que não. Quem gosta do
perigo aqui é você. Quem fica ostentando uma joia roubada é você.
-É, mas não se esqueça que
quem roubou essa joia foi você, há mais de vinte anos. Será que tá
com Alzheimer? Acho você jovem demais pra isso.
-Quem anda ruim da cabeça é
você, Suzanne. A Riva e o meu filho sabem de tudo isso. Contei sobre
meu passado de pequenos crimes para eles... e eles me perdoaram. Você
está ficando sem saída, Suzanne... aceite isso.
-Sabem de tudo até a parte
que eu entro na jogada, mas enfim... você pode ter razã. Só que eu
não posso deixar o Brasil imediatamente e você tem de entender
isso.
-Posso saber por que?
-Eu tenho pendências. Algumas
coisas que ainda precisam ser feitas antes de eu passar esse tempo
fora do país...
-E do que se trata?
-Eu te diria se você ainda
fosse meu comparsa. Mas desde que você decidiu ser o pai do ano, sua
única função tem sido transar comigo... não tenho a mínima
obrigação de te dizer nada, se você não faz mais parte disso
tudo...
-Só fico com medo que você
cometa loucuras contra a Riva...
-Quanto a isso, fique
tranquilo. Eu sou golpista, mas nunca fui louca.
-Não é o que parece, quando
você insiste nessa cisma com a Riva desde que a gente era garoto...
-Márcio... cala a boca! Você
não sabe de nada.
Suzanne deixa o restaurante do
hotel. CORTA A CENA.
CENA 2: Durante o café da
manhã, Eva nota que Renata está com expressão tensa.
-Ainda pensando naquele
pesadelo dessa noite, amor?
-Eu sei que pode parecer
besteira, Eva... mas não consigo tirar aquelas imagens da minha
cabeça.
-Você quer falar sobre esse
pesadelo?
-Melhor não. Você pode me
chamar de supersticiosa e talvez eu seja um pouco supersticiosa
mesmo, mas... prefiro não falar sobre o pesadelo pra não atrair
nada daquilo pra realidade.
-Nossa... pelo visto deve ter
sido algo bem horrível.
-E foi. O que me assusta é
que já apareceu a mesma coisa pra mim três vezes.
-De repente isso é um
processo inconsciente, um medo antigo, já parou pra pensar nessa
possibilidade?
-Pode ser, amor... mas me
pergunto onde aquelas cenas horrorosas se encaixariam entre minhas
memórias do passado.
-Não vamos nem muito longe...
olha, eu não quero forçar você a falar nada, Renata... mas há
poucos anos sua mãe tinha te expulsado de casa ao saber que você é
lésbica e seu pai não fez nada.
-Sim... mas onde que o fato de
eu ter passado duas semanas na rua, catando restos do lixo pra
sobreviver, se relaciona com o meu pesadelo? Eu te garanto, Eva...
não tem relação nenhuma com os apertos que vivi no passado, pode
apostar.
-Será mesmo que não tem,
amor? Pensa comigo... você lembra dos medos que tinha quando passou
essas duas semanas feito mendiga?
-Nossa, amor... eu tive medo
de tanta coisa que eu poderia passar um dia inteiro listando cada um
dos medos que tive...
-Tá vendo? Tira isso da
cabeça, amor... nada de ruim vai nos acontecer, confia!
Renata se tranquiliza. CORTA A
CENA.
CENA 3: Rafael começa a
gravar cenas externas em locação para sua participação na novela.
Após as primeiras cenas, o diretor pede para cortar.
-Corta! - fala o diretor.
-Fiz algo de errado? Quer
regravar algum take? - questiona Rafael.
-Muito pelo contrário,
Rafael. Você está irrepreensível. Impressionante como bastou uma
leitura rápida na sinopse e no texto da sua personagem pra você
pegar a alma, a essência necessária. Eu só vou pedir pra Liliana
exagerar um pouco menos nas expressões, ok?
A atriz se sente insegura.
-Estou indo mal, diretor?
-De forma alguma, querida. Só
falta se ajustar completamente ao que seu personagem pede. Eu sei que
o texto dessa primeira frase pede um vocabulário diferente, próprio
da década de sessenta e toda aquela revolução feminista, porém
você está passando o texto... como é que vou dizer... cantado
demais, entende? Isso não seria ruim, se essa primeira fase se
passasse nos anos vinte, por exemplo. Os anos sessenta pedem algo
mais despojado, relaxado, entende? A autora liberou cacos à vontade.
Como seus pais provavelmente conviveram com pessoas que eram
adolescentes ou adultas nos anos sessenta, vai ser fácil pra você
criar os cacos e relaxar um pouco mais. Lembre-se que seu personagem
é uma feminista que se opõe aos ideais conservadores da personagem
de Rafael. Transmita essa força na sua expressão corporal, no
olhar... - orienta o diretor.
A gravação segue. CORTA A
CENA.
CENA 4: Cleiton está tomando
café da manhã com Adelaide e nota expressão preocupada na esposa.
-Dormiu bem, querida? Suas
olheiras estão aparecendo mais hoje...
-Mal preguei o olho,
Cleiton... não sei exatamente por que. Mas de repente, ainda no
começo da madrugada, me deu um aperto no peito, sabe?
-Por que te deu isso, amor?
Você acha que está com algum problema de saúde?
-Não... comigo tudo está
bem. Estou preocupada é com nossa filha e Eva.
-Ora... por que isso, agora?
Elas estão ótimas!
-Disso eu sei, amor... só
fico com medo que algum mal possa atingir elas.
-Querida... nenhum de nós
nessa vida tá livre de acontecimentos tristes. Faz parte da vida...
-É, mas você sabe bem quais
os riscos que elas correm com essa sociedade homofóbica e machista
pra caramba...
-Também fico preocupado com
nossa filha, Adelaide... mas não acho justo perder o sono por causa
disso. Precisamos confiar de que ela e a Eva sempre vão estar
protegidas...
-Eu sei que você tem razão,
Cleiton... o pior de tudo é que eu sei. Mas sabe intuição de mãe?
Às vezes fico com medo que seja isso... mas espero que não passe de
ansiedade ou paranoia...
-Vai ficar tudo bem,
Adelaide... você vai ver.
Os dois seguem com o café da
manhã. CORTA A CENA.
CENA 5: Riva chega à
companhia de teatro e é recebida no camarim por Procópio e Mara.
-Desculpem o atraso... espero
não estar atrapalhando o trabalho de vocês com os atores... - fala
Riva.
-De forma alguma, querida.
Eles estavam avisados que você viria hoje. Depois, eles já estão
bem independentes, só precisam das minhas orientações quando
recebem alguma nova personagem... - fala Mara.
-Exatamente, Riva. Estamos
felizes que você tenha vindo até nos para se preparar... - fala
Procópio.
-Nem sei por onde começar,
gente... daqui duas semanas mais ou menos vai ser meu teste de
elenco...
-Procópio... você pode
orientar os atores no palco? Vou passar umas orientações à Riva...
- pede Mara.
Procópio deixa o camarim e
Mara começa a passar orientações à Riva. CORTA A CENA.
CENA 6: Ao anoitecer, Eva
chama Renata, animada.
-Amor, você viu que festa vai
ter hoje naquela boate que a gente costuma ir de vez em quando?
-Que festa, Eva? Não vai me
dizer que é a temática da RuPaul!
-Exatamente! É a melhor de
todas! Vamos?
-Ai, amor... não sei. Tou com
a cabeça meio cansada, por causa daquelas preocupações.
-Pode parar, Renata! Agora
você vai deixar a preocupação tomar conta de você e impedir a
gente de se divertir? Não mesmo, amor!
-Você sempre tem esse
jeitinho cativante de me convencer de tudo o que você quer, não é
mesmo?
-Então a gente vai? Vamos
correr então, porque a festa começa daqui uma meia hora!
-Ai, Eva... a gente é
convidada especial pra chegar antes de todo mundo? Você sabe que a
coisa fica boa quando já tá chegando a meia noite e pra ferver
mesmo na pista, só depois das duas da manhã! Então a senhora
sossegue essa bacurinha que eu vou calmamente pro meu banho e me
arrumar pra gente ir sem a mínima pressa...
CORTA A CENA.
CENA 7: Horas depois, Renata e
Eva chegam à boate e na entrada, Renata se sente observada. Eva nota
a expressão tensa da mulher, mas nada diz até que elas passem pela
recepção. Assim que passam pela recepção, Eva questiona Renata.
-Que cara foi aquela quando a
gente tava entrando, amor? Até eu fiquei assustada...
-Eu podia jurar que tinha
gente seguindo a gente, Eva...
-Poxa, Renata! Será possível
que você não vai conseguir relaxar nem aqui que a gente sempre se
diverte? Daqui a pouco aparecem nossas bichas maravilhosas e a gente
arrasa na pista com eles!
-Ai, Eva... não sei. Eu
realmente senti que tavam seguindo a gente... se não seguiam,
observavam.
-Para com isso, amor! A gente
veio aqui hoje pra que? Pra extravasar, dançar até cansar e beber
todas ou pra ficar com medo da vida? Relaxa, amor! Estamos em um
lugar seguro, nada de mal vai poder nos acontecer aqui, ainda mais
que hoje é temática da RuPaul!
-Ai, você tem razão. As
bichas que estão chegando aqui montadas hoje estão um arraso. Uma
mais closeira que a outra!
-E não é? Só quero saber
onde que estão os viados amigos da gente, que nunca perdem essa
festa!
-Neeem te conto o que as viada
devem estar fazendo. Se bobear já estão aqui, só que no dark room,
querida...
-Ai, essas putinha! Não podem
ver um pau que já esquecem das amigas!
As duas riem e seguem
dançando. CORTA A CENA.
CENA 8: Horas depois, com a
festa já em seu ápice, Eva, já meio bêbada, pede para Renata
esperar por ela.
-Amor, cê segura o copo pra
mim? Tou morta de vontade de fazer xixi e preciso correr no banheiro!
Eva corre ao banheiro e se
alivia de suas necessidades. Assim que deixa a cabine, se olha no
espelho.
-Jesus, Maria e José. Minha
maquiagem tá uó!
Eva começa a retocar a
maquiagem e não percebe quando um homem entra no banheiro feminino.
Termina de retocar a maquiagem e fecha seu estojo de maquiagem.
Quando se vira para sair, o homem a agarra à força.
-Cê tá louco, cara? Esse é
o banheiro feminino! - grita Eva. FIM DO CAPÍTULO 72.
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