CENA 1: A delegada começa a
falar.
-Peço um minuto da atenção
de vocês, meninas... o escrivão vai começar a redigir o texto do
depoimento de vocês já já, mas antes eu peço que fale uma de cada
vez e que tentem detalhar tudo o que for possível do incidente. Sei
que isso pode ser difícil e duro para vocês, porém é necessário
para que sigamos com o inquérito e tenhamos como chegar aos
criminosos. Se lembrarem com riqueza de detalhes a discrição física
dos estupradores, melhor ainda, pois nossas retratistas estarão
fazendo o retrato falado dos suspeitos. - fala a delegada.
-Renata... você se importa se
eu só falar até a parte que fui estuprada? Tem algumas coisas que
eu não consigo lembrar e sei que você é mais detalhista... - fala
Eva.
-Eu prefiro falar tudo nos
mínimos detalhes. Eva ainda está muito abalada pelo que ocorreu e
como eu sei de tudo o que nos aconteceu, prefiro falar, pode ser? -
pergunta Renata.
-Claro! O escrivão e as
retratistas já estão prontos, pode começar. - fala a delegada.
Renata começa a falar
enquanto o escrivão e as retratistas a ouvem com atenção.
-Chegamos à boate por volta
das vinte e três horas, talvez um pouco antes. Dançamos e nos
divertimos normalmente, encontramos nossos amigos que costumam sempre
estar por lá e quando era mais ou menos duas da manhã, a Eva me
pediu para eu segurar o copo dela que ela estava muito apertada e
precisava usar o banheiro. Estranhei a demora dela e quando eu
cheguei no banheiro, chamei por ela e ninguém respondeu, pensei que
ela tinha saído dali já. Quando fui sair do banheiro, um homem me
deu um soco na cara, que me deixou atordoada. Ele me agarrou e eu
tentei me livrar dele, mas ele me arrastou até uma cabine do
banheiro feminino, onde me estuprou. Enquanto eu era estuprada eu
ouvi a Eva ser estuprada pelo outro homem. A coisa em si foi rápida,
não durou nem dois minutos, mas parecia uma eternidade, tamanho foi
nosso sofrimento. Eu vi quando o estuprador da Eva deixou a cabine.
Ele ainda ficou um tempo no banheiro com o outro homem. Os dois são
de estatura mediana, cabelos castanhos e olhos também castanhos. O
homem que me estuprou é magro, porém forte. O homem que estuprou
Eva é ligeiramente gordo e igualmente forte. O funcionário que nos
acudiu garantiu que a boate tem circuito interno de câmeras e que a
gerente está disposta a colaborar com as investigações, assim que
o inquérito for aberto. Faltou algum detalhe ou já falei o
suficiente?
-Suas informações foram
precisas, objetivas e certeiras, Renata. O inquérito está sendo
aberto. Você poderia falar o nome do funcionário e da gerente da
boate?
-Claro! O funcionário se
chama Leonardo Gomes da Silveira e a gerente se chama Susana Moreira
Assis.
-Perfeito. Com esses dados,
chegaremos aos contatos deles e eles também serão chamados para
prestar depoimento, para que possamos dar prosseguimento ao
inquérito. Vocês já estão liberadas.
-Você não é daqui, notei
pelo sotaque... de onde você é?
-Sou de São Paulo, mas moro
em Porto Alegre com meu marido. Vim pro Rio para cobrir as férias da
delegada titular. Se vocês tiverem conhecidas em Porto Alegre que
estiverem em situação de vulnerabilidade, por serem lésbicas, por
favor, me avisem... - fala a delegada.
-Não lembro de nenhuma
conhecida gaúcha nossa... - fala Eva.
-Mesmo assim, eu vou deixar
com vocês dois folhetos que explicam melhor a campanha que várias
delegacias da mulher estão fazendo contra a lesbofobia. Se tiverem
interesse, é só ligar para os telefones de contato que estão no
folheto. Agora é torcer para que esses criminosos sejam pegos e
presos logo... - finaliza a delegada.
Todos partem da delegacia.
CORTA A CENA.
CENA 2: Marcelo decide acordar
Rafael, antes que ele se atrase.
-Amor, cê vai acabar perdendo
a hora pra gravação...
-Que horas são, Marcelo?
-Nove e meia.
-Relaxa, amor... hoje eu só
pego trabalho depois do meio-dia. Essa primeira fase da novela tá
sendo rodada com bastante antecedência, a estreia é só daqui
quatro meses...
-Ai, desculpa... você podia
ter dormido mais.
-Nada! Tá numa excelente hora
pra eu me acordar e eu ainda aproveitar um tempinho com meu
maridinho... porque hoje eu só volto depois da meia-noite...
-Sabe, amor... andei pensando
numas coisas aqui... você vai achar muito besta se eu disser?
-Só vou saber se considero
besta ou não depois que você me disser o que são essas coisas que
você andou pensando...
-Então... é que eu ando
observando o meu irmãozinho, sabe... o Lúcio enche de luz essa
casa, minha mãe então nem cabe em si de ter mais um filho. Quem
sabe essa também não é a hora da gente ter o nosso filho?
-Ai, Marcelo... eu quero muito
que a gente adote uma criança. Quero muito ser pai... mas nós ainda
nem fizemos vinte e um anos...
-Mas já somos casados, não
somos?
-Tá, isso é fato, mas pensa
comigo: você ainda não se formou na faculdade. Pelo contrário,
trancou e não sabe quando volta... eu só tou começando a pensar
numa universidade agora, que minha carreira de ator já tá mais
consolidada. Você não acharia mais prudente a gente ter uma
estabilidade mais garantida?
-Eu sei disso, amor... não
pretendo que a gente more aqui com toda a família por muito tempo.
-Nem é essa a questão,
Marcelo... essa mansão é gigantesca e a gente podia até se mudar
pra edícula, se quisesse. A questão é que precisamos ser menos
dependentes da fortuna da sua mãe, entende?
-Você não foi dependente, a
grana vinha do seu trabalho antes.
-É, mas estávamos à beira
da falência, não se esqueça disso. Tá, tem o Vicente, que é rico
também, mas a gente precisa ter a nossa independência. Nossos pais
não vão durar pra sempre. A gente pode até ficar nessa mansão por
gerações, mas antes de pensar em adotar um filho, em ter essa
criança que a gente deseja, a gente precisa esperar mais um tempo.
Saber o que a gente quer da vida... depois, o Lúcio já tem você
com irmão... acho que agora é hora de você curtir o crescimento do
seu irmãozinho e quando ele estiver maior, a gente pode
reconsiderar, ver como nossas vidas vão estar e se vamos assumir a
bronca de adotar uma criança, que vai ser nossa filha pra sempre...
-Você tem razão, amor...
bem, eu vou pro banho.
-Ah, só se eu for junto!
Os dois partem pro banho.
CORTA A CENA.
CENA 3: Na companhia de
teatro, Riva interage com Cláudio, Laura e demais atores. Mara e
Procópio observam admirados a desenvoltura de Riva.
-Cê viu como ela se entrosou
rápido com os atores? Olha como o corpo dela fala! Ela captou a
essência do texto da dinâmica só observando os outros atores e
mostrou a que veio! - fala Mara, admirada com o talento inato de
Riva.
-Essa daí nasceu com talento
pras artes, mesmo. Como é que ela conseguiu passar trinta e cinco
anos longe de atuar? Ser atriz tá no sangue, tá nas veias, tá no
corpo dela. Impressionante! - observa Procópio.
-Essa família tem DNA de
artista, não é possível! Começou com a Marion, que foi descoberta
pelo nosso patrocinador e parou na TV, depois veio a dona Valquíria,
um talento tardio e elogiadíssimo pela crítica especializada...
definitivamente: o ofício dessa família é a arte! - continua Mara,
mesmerizada.
-Não é, Mara? Ainda tem o
Rafael. Esse menino vai longe, ainda! Ninguém mais esperava que a
emissora fosse chamar ele depois de ele ter a coragem de revelar que
é gay e lá está ele, gravando a primeira fase da próxima novela
das onze... - continua Procópio.
Riva desce do palco.
-Gente, estou exausta, mas
estou adorando isso! Como me saí? - pergunta Riva.
-Maravilhosa! - falam Mara e
Procópio, ao mesmo tempo. CORTA A CENA.
CENA 4: Márcio insiste em
falar sobre o filho abandonado com Suzanne.
-Será que eu dancei pole
dance na cruz? Puta que pariu, Márcio! Você não vai parar de
insistir nesse assunto, não?
-Não vou parar até você me
dizer o que foi feito do nosso filho que você abandonou naquele
orfanato de Niterói!
-Pelo amor de todos os santos
desse mundo, Márcio... qual foi a parte que você não entendeu de
“eu nunca fui atrás de saber nada desse pirralho”? Você acha
que me pressionando vai fazer eu falar alguma coisa? Qualquer coisa
que eu te dissesse seria mentira, um consolo barato pra você parar
de me encher o saco.
-Você sabe muito bem que eu
não tenho motivo nenhum pra acreditar em você. Você mente pra
qualquer pessoa com a cara mais lavada do mundo.
-Mas eu nunca menti pra você.
Você sabe muito bem que nesses anos todos em que trabalhamos juntos,
a verdade foi nossa única aliada.
-Será mesmo? Ou será que
você não passou a mentir pra mim a partir do momento que eu rompi
com nossa sociedade? Afinal de contas, isso significa que você não
tem mais a obrigação de ser sincera comigo.
-Tudo isso que você diz são
apenas suposições. Do que adiantaria se eu soubesse, por exemplo,
por qual casal nosso filho foi adotado? Já tem mais de vinte anos,
isso! Você sabe o que isso significa? Que esses pais adotivos podem
até mesmo estar mortos! Ou terem ido embora do estado, do país...
qualquer coisa! De onde você pensa que eu tenho tempo pra planejar
meus golpes e ao mesmo tempo ficar atrás de saber coisas do bebê
que eu mesma decidi deixar pra trás pra não atrapalhar minha vida?
Esse papo já me tirou o pouco que eu tinha de paciência com você,
Márcio. Faça o favor de me deixar em paz!
Márcio cala-se, contrariado.
CORTA A CENA.
CENA 5: Guilherme vai almoçar
com Cláudio no intervalo dos ensaios dele.
-Tenho te notado meio calado,
meio sem saber o que dizer...
-Ai, Guilherme... eu ando
pensando numas coisas aqui. Sinceramente nem sei por onde começar a
te dizer, porque você sabe que eu te amo, mas é que eu tenho tido
algumas dúvidas.
-Dúvidas em relação ao que,
exatamente, amor?
-Por favor, não me entenda
mal... mas você não acha que ainda é cedo demais pra gente pensar
em casamento?
-Mas Cláudio, você mesmo foi
quem me pediu em casamento...
-Sim, mas pedi depois de você
me pedir antes... de me sugerir que a gente se casasse. Só que
conforme esse momento se aproxima, eu vou começando a questionar uma
série de coisas, entende?
-Como o que, por exemplo?
-Guilherme, por mais que eu te
ame e... você sabe que o que eu sinto por você é real, eu não sei
se eu me vejo com você ao meu lado pro resto da vida, entende?
-Como é que é? Quer dizer
que você não tem mais certeza que quer casar comigo? Por favor,
Cláudio... sem você eu não sou nada nessa vida! Eu preciso de
você!
-É isso que me deixa
pensativo, sabe? Culpado, talvez. Toda vez que você demonstra, seja
por palavras ou gestos, precisar mais de mim do que eu de você, eu
me pergunto se isso seria saudável pra uma relação a dois...
assim, algo pra se levar pro resto da vida, entende?
-Entender eu entendo. Só que
eu discordo de você, meu amor... eu acho que a gente tem como fazer
tudo isso dar certo. Não foi você mesmo que disse que a minha
esquizofrenia não é um problema?
-E nunca haverá de ser. Não
duvide disso... o problema é que eu não sei se te amo o suficiente.
Talvez você mereça alguém que esteja inteiramente entregue. Eu não
sei se vou conseguir ser essa pessoa. Eu acho melhor a gente repensar
a ideia do casamento...
-Eu vou embora.
-Pra onde você vai?
-Pra sua casa. Não estou te
abandonando... mas preciso digerir tudo isso...
Guilherme parte, desolado.
CORTA A CENA.
CENA 6: Após almoço na
mansão dos Bittencourt, Márcio conversa com o filho.
-Desculpa perguntar, mas como
é mesmo o nome daquele seu amigo que também tem psoríase, filho?
-Ah... é Cláudio. Mas por
que você quer saber dele?
-Curiosidade, mesmo... eu que
convivo há vinte anos com a psoríase sempre fico interessado em
saber mais sobre as pessoas que tem. Sobre como elas se tratam, se as
recaídas são frequentes, essas coisas... eu mesmo, quando tenho
crise, chego a ficar em carne viva na área atingida...
-Entendi. Mas confesso que
ainda acho estranho que você tenha tido curiosidade de saber
justamente sobre o Cláudio.
-Sabe o que é? Eu tenho uma
teoria pra mim, que nenhuma pesquisa científica ainda comprovou, que
descendentes de europeus tendem a ter essa genética mais... digamos,
“bagunçada”, entende? E como você sabe, eu e você temos essa
descendência. Você saberia dizer se seu amigo também tem? É só a
título de curiosidade, mesmo...
-Pouco ou nada se sabe das
reais origens dele. Ele foi adotado ainda bebê, sabia?
-Sério? Não brinca! E não
há informações sobre a família biológica?
-Nenhuma. Zero. Nadica de
nada.
-Coitado... bem, eu acho
melhor eu ir embora já, pra não me abusar da boa vontade da sua mãe
e da Marion...
-Que isso, Márcio... você
não incomoda a gente nunca!
-Ainda assim, melhor não me
abusar. Tchau, filho!
-Tchau... pai.
Marcelo estranha a curiosidade
de Márcio sobre Cláudio. CORTA A CENA.
CENA 7: Eva e Renata se animam
com as informações que obtém sobre campanha contra a lesbofobia e
contra o estupro corretivo.
-Amor, a gente precisa dar um
jeito de divulgar fortemente essa campanha. Reparou que são
pouquíssimas as informações mais detalhadas sobre como funciona
tudo isso na internet? - fala Renata.
-Verdade. O que me preocupa
com essa falta de informações é que muitas mulheres em situação
de risco não fazem a mínima ideia de onde buscar ajuda.
-Nem me fala, Eva... se por um
lado há leis que nos protegem e garantem nossa dignidade, por outro
lado há o avanço do conservadorismo e a censura das mídias...
-Amor, por que a gente não
investe pesado nessa divulgação?
-Eu penso nisso, mas como é
que a gente vai fazer isso?
-Bem... nós sabemos que as
gerações de hoje não gostam muito de ler... qualquer coisa já
ficam reclamando que é “textão”... quem sabe a gente grava
vídeos?
-É uma excelente ideia, Eva!
Só que a gente vai precisar de um canal no site de vídeos.
-Isso não é necessariamente
um problema. Esqueceu que eu tenho meu canal, onde postei os três
curtas que participei? A gente podia usar o meu canal...
-Ou mesmo fazer um novo... se
bem que isso custaria mais esforço, para conseguir público,
inscritos, essas coisas...
-Justamente por isso, Renata:
o meu canal tem cerca de quinze mil inscritos. Já é um começo e
tanto se a gente começar a divulgar em vídeo essa campanha... e
ainda vai acabar alcançando mais gente, de uma maneira rápida...
As duas seguem animadas
falando sobre a campanha contra a lesbofobia. CORTA A CENA.
CENA 8: Horas depois, Valentim
e Mara estão em casa e ambos trazem todo o material de trabalho para
casa.
-Não serão tempos fáceis,
amor... sabe o que isso me lembra? Nossa juventude... nós começando
a trabalhar como investigadores e levando todo o trabalho possível
pra casa pra poder escapar da ditadura... - divaga Mara.
-Uma ditadura que já era
capenga, mas ainda ameaçava a todos nós. Tristes tempos... espero
que nunca mais voltemos a viver nada parecido nesse país...
-Enfim... chega de conversa
furada. Conseguiu encontrar mais informações sobre o “chefe”?
-Nada ainda, Mara... não está
sendo nada fácil. Esse sujeito sabe se esconder.
-Mas não vai conseguir se
esconder por toda uma vida.
-Sabe o que eu tou concluindo,
Mara? Que talvez esse “Chefe” seja mais de uma pessoa... afinal
de contas, já sabemos que essa facção é grande, que tem
ramificações pelo país e até mesmo nos nossos países vizinhos...
-De fato. Mas não acredito
sinceramente que seja mais de um, Valentim... pensa comigo: talvez o
sujeito que tenha te levado para aquela emboscada que quase te matou
não seja, de fato, o “Chefe”. Homem baixo, de corpo franzino, a
gente encontra aos montes por aí. Quantos dos homens que trabalham
pra essa facção não devem ter exatamente esse tipo físico? Para
mim, o verdadeiro “Chefe” nunca suja as mãos e sempre manda
alguém fazer o serviço que ele manda...
-Você pode ter razão,
amor...
Os dois seguem pesquisando
informações. CORTA A CENA.
CENA 9: Cláudio está
chegando em casa na companhia de Bruno.
-Desculpa ter te chamado pra
passar a noite com a gente, mas é que eu notei que o Guilherme ficou
abalado com a conversa que tive com ele.
-Imagina, Cláudio... você
fez o que tinha de ser feito. A gente já esperava que ele fosse ter
uma reação dessas. Vamos ajudá-lo, você sabe que ele precisa de
nós...
Cláudio abre a porta de casa
e os dois entram.
-Ué... você não disse que
ele veio direto pra cá? Não era para ele estar na sala? - estranha
Bruno.
-Capaz de ele ter ido dormir,
ele faz isso quando tá triste...
Os dois vão ao quarto e
encontram Guilherme espumando. Bruno encontra uma garrafa de uísque
ao lado do remédio.
-Ele misturou álcool com o
medicamento! - desespera-se Bruno.
FIM DO CAPÍTULO 74.
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